BLACKNEWs

ANIMES - JOGOS - CRYPTO
Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Copiar Link

Toei Animation: O Sistema Que Forjou e Sufocou Talentos da Animação

28-07-2025
Imagem do artigo

Nos anos 50, enquanto o Japão se reerguia do pós-guerra, a Toei Doga – hoje Toei Animation – criou um dos sistemas de treinamento de animadores mais ambiciosos e estruturados da história dos animes. Este modelo não apenas formou gerações inteiras de animadores, mas também gerou conflitos internos, desgastes profissionais e até uma debandada de talentos que marcaria o futuro da indústria.

Para entender como esse modelo surgiu e qual foi seu impacto, precisamos voltar no tempo. Antes da Toei, existia a Nihon Doga, um coletivo de animadores liderado por nomes como Yasuji Mori e Yasuo Otsuka, que sobrevivia fazendo trabalhos avulsos, como cardápios e capas de livros infantis. Quando surgia um projeto de animação, contratavam mulheres temporárias para pintura e traçado. Era um esquema de sobrevivência, sem formação técnica estruturada e com pouquíssimos recursos.

Foi esse pequeno estúdio que a Toei comprou em 1956. Na época, a Toei era um estúdio de cinema buscando se reinventar, e via na animação uma oportunidade de ouro. O cinema estava se popularizando no Japão, e havia um mercado em expansão para comerciais animados, além do relançamento de Branca de Neve no Japão ter impressionado animadores e despertado o interesse do público. Quem abraçou essa ideia dentro da Toei foi Hiroshi Okawa, o presidente, que, apesar de vir do mundo da contabilidade e gestão esportiva, percebeu que a animação poderia ser uma ferramenta poderosa para conquistar o público, fortalecer a imagem do estúdio e exportar filmes japoneses para o mundo. Com essa visão, nasceu o projeto da Toei de criar a "Disney do Oriente".

Ao assumir o pequeno estúdio da Nihon Doga e transformá-lo na divisão de animação da Toei, Okawa construiu um prédio novo com ar condicionado, equipamentos modernos e, principalmente, instituiu um modelo industrial de formação de animadores, inspirado diretamente no sistema da Disney. Okawa sabia que o Japão não tinha animadores prontos em números suficientes. Então, em vez de apenas contratar, ele criou uma verdadeira escola interna de formação profissional, apelidada pelos próprios profissionais de "Universidade da Doga". A lógica era quase artesanal, com veteranos como Yasuji Mori e Akira Daikohara liderando pequenos grupos de novatos (geralmente três ou quatro). Os aprendizes começavam com tarefas básicas, como os desenhos intermediários (in-betweens), e avançavam para etapas mais complexas conforme ganhavam confiança e domínio técnico, com o trabalho sendo revisado e corrigido de perto.

Esse sistema evoluiu para o "Sekkei Doga Key Art System", onde os animadores mais experientes faziam apenas rascunhos iniciais das cenas (key frames), e os alunos finalizavam tudo, limpando os traços e completando os movimentos. Era um processo estruturado, com hierarquia clara, mas que abria espaço para crescimento. Avaliava-se a capacidade de adaptação rápida ao estilo visual do time, e não era nada fácil passar. Em 1958, por exemplo, mais de 50 candidatos fizeram o teste, mas apenas pouco mais de 10 foram aceitos. Esses poucos eram alocados diretamente nas produções, inclusive nos longas. O aprendizado acontecia na dinâmica de mestre-aprendiz. Yasuji Mori, conhecido por seu grande empenho em ensinar, formou talentos como Hayao Miyazaki. Mori valorizava o acabamento visual e a expressão refinada, um estilo mais próximo da animação da Disney. Já Akira Daikohara, discípulo de Kenzo Masaoka, era fascinado por atuações exageradas, cenários excêntricos e um estilo visual mais impactante, priorizando volume e força visual, numa abordagem bem diferente da precisão de Mori.

Essa diferença gerou divisões internas na Toei, com animadores se aliando a diferentes "escolas". No entanto, foi justamente essa diversidade que permitiu o florescimento de uma pluralidade estética. Miyazaki, por exemplo, identificava-se com o grupo de Mori e chegou a se engajar politicamente para garantir que Mori fosse mantido como supervisor de animação.

Esse sistema, que combinava práticas intensas, mentorias sólidas e uma estrutura pensada para formar profissionais completos, transformou a Toei nos anos 50 e 60 em um verdadeiro centro de formação para a indústria de animes. Em poucos anos, a Toei conseguiu escalar a produção, realizando o sonho de Okawa de produzir dois longas e quatro curtas por ano.

No entanto, esse modelo veio com um preço. O primeiro grande problema foi a padronização. Com tanta gente sendo treinada e a produção funcionando quase como uma linha de montagem, o nível médio começou a decair. A individualidade artística começou a desaparecer. A produção, de expressão criativa, virou uma questão de sistema. Isso gerou um segundo problema: o modelo criava uma cultura onde os novatos eram vistos como "estagiários eternos", com pouca chance de crescimento rápido e presos num ciclo de supervisão sem autonomia real.

Essa frustração levou muitos a sair do estúdio em busca de outras oportunidades, principalmente na recém-formada animação para televisão, que crescia rápido e prometia mais liberdade criativa. Nesse contexto, surgiu uma onda de produções dissidentes, reunindo ex-funcionários que buscavam mais liberdade. Um nome central nessa ruptura foi Yasuhiro Nagasawa. Ele entrou na Toei em 1957, mas saiu em 1965 insatisfeito com as limitações artísticas. Nagasawa tinha uma visão muito mais autoral da animação. Mesmo na Toei, promovia sessões internas para mostrar obras estrangeiras a seus colegas. Fora do estúdio, montou espaços colaborativos como o Studio Haku 21, reunindo outros artistas descontentes com o modelo da Toei. Essa rede se transformou na base criativa de projetos únicos. Artistas como Sadao Tsukioka e Shinichi Suzuki também seguiram esse caminho. O que se formava era uma rede alternativa de produção, pequena, experimental, e baseada em projetos, geralmente ligados à publicidade ou à comédia para televisão. Muitos animadores tinham um pé no mercado publicitário, o que ajudava a bancar esses experimentos fora dos grandes estúdios.

Com o tempo, essas iniciativas ganharam espaço, e os estilos dos artistas se espalharam pela indústria. Nagasawa, por exemplo, montou novos estúdios e dedicou-se à pintura em aquarela. Essa saída da Toei não foi algo isolado; aconteceu em ondas, sempre pelos mesmos motivos: artistas treinados na disciplina técnica do estúdio que não queriam passar a vida inteira animando dentro dos limites rígidos impostos por eles. Esse movimento, uma verdadeira diáspora da Toei, acabou sendo o motor por trás de uma série de projetos criativos e inesperados dos anos 60. Yasuo Otsuka, por exemplo, simboliza bem esse espírito, um grito de animadores que passaram pela Toei mas recusaram o caminho previsível que o estúdio oferecia. Gisaburo Sugii, um dos alunos de Otsuka, também tomou essa decisão.

A quantidade de saídas foi tão grande que dentro da própria Toei o fenômeno ganhou o nome de "Dappi", algo como "troca de pele" – um processo doloroso, mas necessário, em que os talentos formados no estúdio sairiam levando consigo toda a bagagem técnica adquirida. Muitos dos estúdios e projetos que definiriam os animes dos anos 60 e 70 nasceram desse movimento. Aqueles que ficaram na Toei começaram a se organizar, exigindo melhores condições de trabalho e mais reconhecimento, dando origem aos primeiros conflitos trabalhistas da história dos animes.

Esse cenário mostra como o sistema de treinamento criado pela Toei foi, ao mesmo tempo, uma conquista e um problema. Por um lado, criou uma estrutura inédita no Japão para treinar animadores, revelando nomes como Yasuo Otsuka e Akira Daikohara, e transformando o estúdio em um terreno fértil para o surgimento de grandes artistas. Mas, por outro lado, implementou uma lógica de produção focada em volume, controle e eficiência, que gerava resultados técnicos sólidos, mas acabava sufocando a individualidade artística e dificultava a valorização do trabalho criativo. A Toei virou referência, mas também virou um exemplo de como um sistema pode tanto nutrir a arte quanto sufocá-la. Ainda assim, a herança daquele modelo de formação segue viva até hoje. Um bom exemplo é o "teste de in-between", ainda usado em estúdios e escolas de animação, que avalia a capacidade de reproduzir com precisão o traço de outro artista. Essa prática mostra como o método criado na Toei realmente virou a base do ensino de animação no Japão. A própria trajetória do estúdio de Kenzo Masaoka até o surgimento do Studio Ghibli se tornou tema de várias pesquisas e estudos acadêmicos. No final das contas, foi um sistema que consolidou as bases da animação japonesa moderna.

VOCÊ PODE GOSTAR

Imagem do artigo
Imagem do artigo